Opinião

Aquecimento global e inverno demográfico

Margarida Couto, presidente do GRACE*

Pedimos todos os dias às pessoas que mudem o modo como vivem, para que possamos reduzir a nossa pegada carbónica, controlar o aquecimento global, não exaurir os recursos do planeta.

Pedimos-lhes que migrem para mobilidade elétrica, que instalem painéis solares e implementem outras medidas de eficiência energética, que reciclem e fomentem a economia circular, que adotem práticas de consumo responsável.

E ainda bem.

Mas nunca lhes pedimos para terem filhos, se isso fizer parte do seu projeto de vida. Pelo contrário, há mesmo quem peça que se limite a descendência direta a um número não superior a dois, porque “o Planeta tem pessoas a mais”!

Pedimos todos os dias às empresas que se comprometam com metas “net-zero” até 2050 e combatam por todos os meios as alterações climáticas, que assegurem a transição energética eliminando o consumo de combustíveis fósseis, que deixem de impactar tão negativamente a biodiversidade, que transformem a atual economia linear numa economia circular, que poluam menos, que reduzam substancialmente o consumo de recursos naturais, com a água à cabeça de todos eles.

E ainda bem.

Mas nunca lhes pedimos que criem condições para que os seus colaboradores possam ter o número de filhos que desejarem. Nem que apoiem ou incentivem a natalidade. E parece estar fora de questão compensarmos as empresas cujas taxas de natalidade sejam superiores “à média”, por terem práticas familiares mais responsáveis e com isso contribuírem para combater o inverno demográfico que se avizinha. Talvez porque o Planeta tenha “pessoas a mais”.

Vem isto a propósito do recente estudo publicado pela revista científica The Lancet, que mostra aquilo que já sabemos, mas que teimamos em ignorar (e que nos devia fazer ver que o Planeta não tem “pessoas a mais”!):

(i) até 2050 mais de ¾ dos países não terão taxas de natalidade que sustentem manter a população atual e, a partir de 2100, a renovação da população deixará de ser possível, seguindo-se um período de longo declínio; (ii) o número de nados-vivos já atingiu o seu pico em 2016, com 142 milhões, tendo caído até aos 129 milhões em 2021; (iii) entre 1950 e 2021, a taxa de natalidade mundial caiu de 4,8 para 2,2 filhos por mulher (com países a registar uma taxa pouco superior a 1, como Portugal, com um taxa de 1,3 e onde já se morre bem mais do que se nasce).

E assim, caminhamos aceleradamente para uma pirâmide populacional invertida, que constitui, em si mesma, uma enorme ameaça à sociedade tal como a conhecemos. Basta pensarmos que, se nada formos capazes de fazer – e nada indica que estejamos sequer a tentar – em 2050 (o ano alvo da neutralidade climática) uma em cada seis pessoas no mundo terá mais de 65 anos (contra uma em cada onze em 2019). Isto num contexto em que, de acordo com o Observatório da Solidão, 70% das pessoas com mais de 65 anos já hoje vive sozinha ou mesmo isolada em Portugal e sente-se só. O que faremos, em 2050, com tanta solidão acrescida? O que será nessa altura a economia, nomeadamente em termos de produtividade e crescimento? Como poderá funcionar então o sistema de saúde? Como manter, num contexto tão adverso, a imprescindível solidariedade intergeracional? Que outras questões poderíamos colocar, face a um cenário demográfico tão adverso, que nem sequer nos ocorrem ainda?

É verdade que não herdámos o Planeta dos nossos ascendentes, antes o pedimos emprestado aos nossos descendentes. Mas é para as gerações vindouras que precisamos de “salvar o Planeta” e é por isso que o dever moral que sentimos de o fazer se assemelha ao dever moral, que ainda partilhamos, de assegurar um futuro aos nossos filhos.

Combatamos o aquecimento global, sim! Mas o inverno demográfico, não?!

Não podemos ser negacionistas das alterações climáticas, claro que não. Mas podemos ser negacionistas das alterações demográficas, independentemente dos riscos que as mesmas comportem para a Humanidade?

Porquê um foco na neutralidade climática – que exige que, até 2050, reduzamos as emissões carbónicas em cerca de 95% – desprovido de qualquer preocupação com a “neutralidade populacional” – que implica que sejamos capazes de manter uma taxa de natalidade que assegure a renovação de gerações?

Para quem queremos salvar o Planeta, se não for para as Pessoas?

*Em representação da Vieira de Almeida & Associados – Sociedade de Advogados

Comentários
Margarida Couto

Margarida Couto

Margarida Couto é licenciada em Direito e pós-graduada em Estudos Europeus, pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa. Integra a Sociedade de Advogados Vieira de Almeida & Associados (VdA) desde 1988, sendo a sócia que lidera a área de prática de Telecomunicações, Media e Tecnologias da Informação e a área de prática do Terceiro Sector e Economia Social. É a sócia responsável pelo Programa de Pro Bono e de Responsabilidade Social da VdA, presidindo ao Comité Pro Bono... Ler Mais..

Artigos Relacionados