Opinião
Alto desempenho e retenção: entre o espírito do contrato e a letra do contrato

Recrutar talento, sobretudo aquele que sabemos é diferenciador na organização, pode ser um desafio. Sobretudo perante o que a empresa precisa e o que o colaborador procura, entre a vida pessoal e a carreira vs. a vida da organização e o que esta integra.
O espaço que separa colaborador e empresa pode tornar-se imenso, com as expetativas implícitas e explícitas a diferir, impactando assim na eficácia do desempenho que se observará depois.
Para quem coordena equipas, a diferença entre o que dizemos que contratamos e o que efetivamente contratamos merece ser aqui lembrada. A “Letra do Contrato” representa os termos formais e específicos do mesmo, de onde se incluem as responsabilidades e obrigações gerais, a remuneração, benefícios auferidos, etc.
O “Espírito do Contrato” aponta às expetativas subjacentes, aos valores e à cultura organizacional que influenciam a contratação e desde cedo lançam no colaborador e empresa mutuamente desejos, ambições, receios, perceções, mais ou menos ansiedade e expetativa.
Mas todos os que gerimos pessoas sabemos que uma coisa é o que se consegue colocar escrito (as horas de trabalho, função, salário…), mas outra e que não é possível descrever é como vai ser a produtividade e a capacidade de entrega, a motivação, a energia positiva e contagiante que se impregna nos outros, a boa disposição em cada reunião, etc., etc.
Função, lugar e destino
Um dos pontos mais críticos é a expetativa e o encontro com a realidade cultural da empresa. Há poucos fatores tão violentamente poderosos como este. Ocultar e não clarificar de antemão o modelo de gestão da empresa, os seus valores, a hierarquia monolítica ou diplomática, a postura formal/informal no trato e nos processos, a exigência ou inexistência da mesma na aparência, o respeito pelo cumprimento de horários, etc., – numa palavra, a sua cultura, fará certo que mais se recebam candidatos que encaixam na letra da função, caso esta seja devidamente explicada.
Mais que a função, procuramos um contexto. Mais que o lugar, procuramos uma comunidade. Mais que um destino de carreira já desenhado, procuramos um caminho que almejamos nos leve longe sem estar trancado apenas a uma possibilidade.
E isto não se escreve num contrato. Por mais alíneas que se coloquem.
Alinhamento de expetativas
Se há benefício do espírito do contrato, é que independentemente do que venha a ser escrito, ele traça previamente com caneta de tinta insolúvel os cenários esperados, numa espécie de óculos de realidade virtual em forma de discurso que permite explorar a quem escuta se tal imagem agrada ou se deve afastar-se.
A correta explicação do espírito do contrato evita conflitos e mal-entendidos, naquilo que comummente se designa pela comunicação clara das expetativas implícitas (as explícitas já vêm na letra do contrato).
Duas ideias de partida
Uma que é simples, mas que nem sempre é fácil encontrar, é o que achamos ser uma imagem realista (o que é isso de realista, quando não há uma única imagem da empresa, pois cada pessoa tem uma imagem absolutamente pessoal e única?): revelar valores e princípios, durante o processo de seleção, destacar a importância da compatibilidade cultural, contar a história do que trouxe a empresa até aqui, relatar episódios recentes e como foram resolvidos. Isto são apenas exemplos da ponta do icebergue, mas que ajudam.
Outra ideia igualmente simples é a manutenção da comunicação aberta desde o início do percurso do colaborador; mas não aguardando pelo seu pedido de ajuda, antes indo ao encontro dele regularmente nos primeiros meses, provocando o feedback, pedindo a partilha sincera, forçando a que nos peça ajuda (todos precisamos dela nos primeiros meses!), e com isto incentivando o diálogo.
O espírito do contrato pode nem sempre ser claro. Mas a letra do mesmo ainda é menos, caindo rapidamente no esquecimento pouco depois da aventura arrancar, logo apareçam os primeiros projetos. Por isso todos na experiência sabemos que a letra do contrato pode ser clara no contraste com a folha branca, assinada no fim e rubricadas todas as páginas. Mas é o espírito do contrato que alinha, que sonha, que alimenta a ambição de ser mais, de contribuir e fazer a diferença – e fideliza. Seja a empresa digna de empenhar bem alto esse espírito que é um guia.