Opinião
A redescoberta do associativismo

Em muitos países o associar-se para algum objetivo comum, difícil de atingir por pessoas isoladas, mas bem mais fácil quando há várias pessoas empenhadas, nem sempre foi fácil. Perante o preconceito de que os outros quererão aproveitar-se do meu trabalho, o melhor é “cada um por si”.
Sabemos por experiência que, em geral, com regras claras para resolver as diferentes situações duvidosas que a vida apresenta – com a pessoa a dirigir, escolhida por todos, pelo seu sentido de justiça e pela capacidade de criar consensos em temas de interesse da associação e para o bem dela -, o trabalho do conjunto acaba por ser sempre muito mais eficaz e produtivo. Desde que não apareçam fatores exógenos fora da normalidade.
Ao observar a ação de grupos sociais parece mais frequente que as pessoas mais sociáveis e colaborantes, com certo desenvolvimento intelectual, em geral situadas nos estratos mais altos da sociedade, podem estar mais abertas e ater-se às regras definidas, para chegar aos objetivos esperados.
Um modelo associativo com muita presença nas sociedades europeias era o das cooperativas. Talvez porque o crescimento trazia complexidades, a sua dimensão nunca foi chamativa, reduzindo-se ao número de cooperantes que se podiam conhecer entre si. E com dificuldade de adesão para outros menos conhecidos ou de terras mais distantes.
Por vicissitudes da conjuntura, as cooperativas em Portugal perderam o seu apelo na revolução dos cravos, talvez pela manipulação de que foram alvo. O retomar o seu papel deverá levar o seu tempo, porque é necessário reconquistar a confiança nas pessoas que as dirigem, ao invés de numa instituição abstrata, que veicula uma certa forma de cooperação. De um modo geral, as cooperativas na Europa não tinham uma dimensão muito grande.
Um exemplo cooperativo muito bem sucedido, com 3,6 milhões de cooperantes é o GCMMF- Federação de Cooperativas de Comercialização do Leite, Gujarat, na Índia, que tem sido modelo para todas as outras cooperativas.
A que faz a GCMMF?
Comercializa o leite que os seus cooperantes entregam, de manhã e à tarde, estando tudo pensado para se dar o melhor ao cooperante, nos limites de se manter um bom equilíbrio económico-financeiro. Qualquer pessoa pode ser cooperante, pagando uma quota irrisória e atuando dentro das praxis da cooperativa:
– O leite entregue é pago no ato, com base no volume e a densidade de gorduras (o leite de búfala é mais gorduroso e melhor pago). Esta prática é de grande alívio para os camponeses pobres e permite-lhes comprar, na própria cooperativa os insumos de que necessita.
– Recebe-se todo o leite, mesmo nas épocas de alta produção, como são as épocas de chuva, quando há mais pastos e a produção de leite que pode ser duas ou três vezes a das épocas secas.
– O valor a pagar por litro é fixado numa percentagem bem elevada do preço do litro de leite no mercado.
Na organizacao da GCMMF, cada aldeia tem a sua cooperativa. As cooperativas de um ou mais distritos formam uma União de Cooperativas. E todas as Uniões constituem a Federação das Uniões de Cooperativas.
Cada aldeia tem uma cooperativa, para minimizar o tempo de levar o leite duas vezes por dia. Na cooperativa o leite é refrigerado e depois transportado para o centro de processamento, um por cada União ou partilhado por mais de uma União. Aqui separa-se a parte das gorduras para se produzir toda a variedade de derivados, como a manteiga, ghee, queijo, baby-foods, ice-creams, mozarella, shrikand, chocolataria, etc. O leite é pasteurizado, embalado e metido em caixas. Todo o material volta depois para cada uma das cooperativas e milhares de pontos de venda de produtos da sua marca, AMUL.
As Uniões têm o papel de aglutinadores e distribuidores da carga da produção entre as unidades de processamento da sua área. A Federação coordena todo o conjunto de atividades e tem funções mais especificas, como o marketing, a investigação (para melhoria das espécies, melhoria da produtividade, alimentação do gado, etc.), assistência veterinária e de inseminação artificial, etc. Também se encarrega da publicação do Boletim, que transmite indicações úteis aos cooperantes, etc.
Verguese Kurien deixou uma marca indelével no movimento cooperativo da Índia, ao ser o director da GCMMF por mais de 50 anos e com políticas muito bem pensadas, que pôs em prática. Tais políticas e a sua consolidação, aliadas à sua integridade e o interesse genuíno em ajudar os camponeses a terem melhores rendimentos, fizeram com que a GCMMF e Anand, onde a sede da cooperativa se situa, fossem pontos de visita de vários primeiros ministros, ávidos de saber porque é que essa cooperativa era um sucesso, enquanto todas as outras, promovidas pelo Governo (do tipo socialista soviético), e dirigidas por ele, eram um desastre total. Reproduzo a seguir breves comentários do PM Lal Bhadur Shastri, aquando da sua visita à AMUL e o encontro com o Dr. Verguese Kurien, no dia 31 de Outubro de 1964:
“No segundo e terceiro planos quinquenais constituímos muitas cooperativas de leite. Todas da posse e dirigidas pelo Governo. E todas, um desastre indisfarçável, com perdas. Ouvi que a AMUL e os seus produtos são um sucesso no país, com elevada taxa de crescimento anual. Quero saber porque esta é um sucesso, quando as outras todas falharam” [1] comentou Shastri a V. Kurien.
Kurien notou que em Anand mandavam os agricultores, que são os donos, e ele era apenas um assalariado. Shastri, impressionado, pediu-lhe para replicar o modelo noutros Estados, coisa que Kurien fez com todo o entusiasmo, em vários deles. “O Governo dá um ‘cheque em branco’ e criará toda a estrutura e organismos que indicar. Replique for favor Anand pela Índia fora. Faça disto a sua missão e qualquer coisa que necessite, o Governo providenciará”[2]
Não admira que os resultados tenham sido muito bons e o conceito se tenha espalhado por muitos Estados e, com tempo, por vários setores da agricultura. Hoje, cerca de 100 milhões de famílias na Índia, tem um segundo fluxo de rendimentos pelo leite entregue à cooperativa da aldeia.
Felizmente muitos novos modelos de associação estão a aparecer, sobretudo orientados para os serviços de comercialização de fruta, de vegetais orgânicos, etc. Porque a associação, do tipo que for, ao representar um grande grupo de associados, tem grande capacidade para negociar preços; tem a possibilidade de criar um R&D específico, feito pela associação ou contratado com uma entidade idónea exterior, e também capacidade de exportação, coisa que é difícil, senão impossível para um agricultor isolado.
*Professor da AESE-Business School, do IIM Rohtak (Índia) e autor do livro “O Despertar da Índia”
[1] I too had a dream, Verguese Kurien, pgs 98 a 100.
[2] Ibidem.