Opinião

A liderança de Abril

João César das Neves, economista e professor catedrático

A revolução do 25 de Abril significou caos, destruição e decadência, certo? Não, de todo! O novo regime, descontada a natural turbulência, inevitável em transformações abruptas, correu espantosamente bem.

Aquilo que se destaca nos anos revolucionários é a qualidade da liderança, não a sua falha. Por isso o cravo, não a G3, simboliza Abril. Isso deve-se a um punhado de líderes que conseguiram algo que nenhum compatriota obteve, em quase 900 anos. Isto não tem apenas valor histórico, mas lições decisivas para o momento atual.

A história da democracia portuguesa está juncada de fiascos, com as sucessivas revoltas terminando em dois destinos miseráveis, o tumulto ou a podridão. Nessa evolução, o golpe de 1974 destaca-se como sucesso único, apesar de condições muito desfavoráveis. O momento era particularmente difícil, entre choques do petróleo globais, que causaram colapsos financeiros em 1977 e 1983. Por outro lado, era o fim de um império com 560 anos, gerando guerras civis nas novas nações. Por isso é quase inacreditável que, passados 10 anos de revolução, Portugal estivesse solidamente democrático e à beira de entrar no clube de países ricos da CEE. Esta é a prova definitiva e incontestável da qualidade da liderança de Abril.

A quem se deve essa liderança? Para lá dos chefes das duas operações militares (25 de abril de 1974 e 25 de novembro de 1975), aliás não especialmente complexas, muitos nomes foram decisivos na construção do país democrático, descolonizado e desenvolvido (os três Ds de Abril) que hoje mantemos. Nesses, cinco pessoas destacam-se claramente.

O primeiro grande perigo da democracia em Portugal é, há séculos, como se disse, o tumulto, com a maior parte das revoltas acabando em grotescas tragédias sangrentas. Por isso, acima de todos os seus contemporâneos, é preciso mencionar o general Costa Gomes e o doutor Álvaro Cunhal, grandes responsáveis pela ausência de uma guerra civil em 1975. No “Verão quente”, o PCP controlava o país, mas só se poderia manter pela força das armas. Muitos fatores evitaram o sangue, mas a atitude desses dois líderes comunistas, preferindo perder o poder a passar ao ataque, foi certamente decisiva.

Nos raros casos em que se evitou a violência revolucionária, a agressão acabou por ressurgir por vingança do lado oposto. Assim, nesse momento, foi também decisivo o patriotismo dos vencedores, que acataram a lúcida declaração do major Melo Antunes a 26 de novembro, tomando a participação do PCP como “indispensável” ao regime.

Assim, ao contrário de quase todas as antecessoras, a revolução de 1974 atingiu a estabilidade logo em 1976. Só que, vencido o tumulto, era preciso enfrentar a incompetência e corrupção que sempre tinham envenenado as poucas revoluções lusitanas que sobreviveram aos anos iniciais. Aí, a visão do doutor Mário Soares, apostando claramente na adesão à Europa, e a capacidade do professor Cavaco Silva, que a soube realizar, são indiscutivelmente modelos de liderança que marcarão para sempre a nossa história.

Desta forma, em vez da tradicional atitude de esquartejar magros proventos de uma economia apática, o país foi lançado num grande projeto de desenvolvimento que confirmou o último, e mais exigente, D da revolução. Hoje, celebrando 50 anos, o regime de Abril atingiu uma meta que nenhum na nossa história conseguiu ultrapassar. Somos um país estável, democrático, respeitado, desenvolvido, que participa com dignidade e confiança num mundo crescentemente instável e perigoso.

Não é possível lembrar este impossível sucesso da revolução de Abril sem constatar, cinco décadas depois, o regresso das tendências venenosas que foram vencidas naqueles anos. Ultimamente temos visto ressurgir o corporativismo tacanho e oportunista, o compadrio clientelista e descarado, a crítica superficial e irresponsável, o arrogante debate de surdos. Pela primeira vez num século, o país parece ingovernável. Só evitaremos o pior com líderes como os de Abril.

 

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João César das Neves

João César das Neves

Licenciado e doutorado em Economia, João César das Neves é professor catedrático e presidente do Conselho Científico da Católica Lisbon School of Business & Economics, instituição onde, ao longo dos anos, já desempenhou vários cargos de gestão académica. Também possuiu um mestrado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa e um mestrado em Investigação Operacional e Engenharia de Sistemas pelo Instituto Superior Técnico. Ao longo do seu percurso profissional também esteve ligado à atividade política. Em 1990 foi assessor do... Ler Mais..

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