Opinião

A conversação como espaço de virtude e de perversão – Parte II – Sobre a integridade na era da autenticidade

João Sevilhano, Sócio, Estratégia & Inovação na Way Beyond

Estou espantado com a quantidade de pessoas à minha volta que andam “numa busca pela sua verdade” ou que, já a tendo encontrado, a utilizam como argumento que se equipara aos usados numa birra infantil: “(…) pois, mas é a minha verdade”, como quem diz “temos pena” ou “é sim porque sim” ou “não porque não”.

A julgar pelo número de referências a este fenómeno que oiço quase diariamente, fica a parecer-me que a salvação da nossa espécie conseguir-se-á quando nos conseguirmos encontrar, verdadeiramente. Ter-nos-emos salvo quando formos capazes de ser autênticos[1].

Alinhando com a moda e procurando ser verdadeiro, o que sinto em relação a isto é mais irritação do que espanto. A irritação é semelhante à que senti em relação a outras modas anteriores. Lembra-se de quando tínhamos sempre ou o mais possível de “pensar fora da caixa”? Depois, e muitas vezes em conjugação com a anterior, era fundamental que “saíssemos da nossa zona de conforto”. Agora, a verdade, a autenticidade aparecem como a cura para os males da humanidade.

Vejo, pelo menos, dois obstáculos importantes à hipótese da autenticidade como solução. O primeiro na ideia de que a busca pela autenticidade parece ser um exercício individual e individualista, como escrevi na primeira parte deste texto[2]. Não creio que tenhamos, enquanto espécie, a maturidade suficiente a ponto de possibilitar que o todo seja salvo pela soma das suas partes. Aquilo que se observa na maioria das partes é, cada vez mais, o “salve-se quem puder” e o “primeiro eu, antes de qualquer outro”. Desta forma será difícil encontrar uma solução que abranja e que contemple mais do que uma pessoa.

O segundo obstáculo, que reforçará o primeiro, é a verdade ser relativa. Para lá desta obviedade – ainda será esta uma ideia óbvia? – e da relatividade, a verdade é cada vez mais colocada em causa. É cada vez mais fácil de tomar a mentira como o seu contrário e cada vez mais difícil de se confiar no que se sabe ser verdadeiro. A culpa estará, em grande medida, na profusão das tretas, como já escrevi antes[3]. Ao juntar esta relatividade extrema e infundada com uma individualidade individualista, a busca pela verdade torna-se na procura de uma auto-justificação constante, irritante e insignificante.

Recorro de novo à conversação como exemplo ou como ponto de partida para uma reflexão. Considere-se a seguinte hipótese: as competências que, por exemplo, uma psicoterapeuta[4] deve desenvolver e que farão com que seja reconhecida e boa no desempenho da sua atividade, são muito próximas das que um burlão tem de apurar para ser bem sucedido.

Ora vejamos, nas duas atividades se utiliza a conversa para alcançar os resultados pretendidos. E ser um artesão da conversação implica: ativar a atenção e a concentração, demonstrar capacidade de escuta, empatizar e compreender, revelar interesse e cativar o interesse do outro; envolve também ser-se capaz de improvisar e de se adaptar ao outro e ao seu contexto. Todas estas dimensões servirão os diferentes propósitos com a mesma conveniência; mesmo que sejam tão díspares quanto ajudar e apoiar ou enganar e convencer. É também curioso que todas estas competências e capacidades deverão ser usadas com a autenticidade e a verdade como pano de fundo. Só dessa forma poderão ser reconhecidas e, sobretudo, “bem acolhidas” pelos interlocutores.

Onde residirá, então, a diferença? Acredito que a encontraremos na “perigosa” dimensão moral. Perigosa porque, tal como acontece com a verdade e com a autenticidade, cada um tem a sua. É perigosa também porque se corre o risco de se entrar nos clichés, por muito verdadeiros que sejam, da falta de valores ou do fenómeno que se verifica nas formações sobre ética[5]. A diferença entre uma (boa) psicoterapeuta e um (“bom”) burlão está, fundamentalmente, na intenção e na integridade de uma e de outro. Enquanto o interesse da primeira deverá ser a promoção do bem-estar do outro, a intenção do segundo é o ganho pessoal à custa de outrem.

A autenticada associa-se ao binómio “verdade-mentira”. A integridade vai para além de um binómio. No seu sentido literal, integridade tem que ver com o que está inteiro, são, onde não há a falta de nenhuma das suas partes constituintes. No seu sentido figurado, ser íntegro liga-se à rectidão e à honradez. Como seria o mundo hoje se nos ocupássemos mais em desenvolver a honra e se fôssemos mais (cor)rectos uns com os outros? Talvez andemos tão ocupados em descobrir o que é verdade e mentira porque, precisamente, a honra, a rectidão e a pureza das intenções estejam em vias de extinção.

Na conversação, ou seja, na forma como interagimos uns com os outros e com o mundo, não será a técnica nem a autenticidade que nos ajudarão a melhorar e a evoluir na nossa dimensão humana. Será algo muito mais próximo da demonstração de um interesse genuíno pelos outros que, paradoxalmente “é um interesse desinteressado”, como me disse sabiamente a minha mulher. É um interesse inclusivo, que inclui o outro, acrescento eu. Algo que um burlão nunca poderá conseguir porque não se ocupa nem com a verdade nem com a mentira; ocupa-se apenas a conseguir o que quer, através da “sua” verdade.

[1] Chamar os bois pelos nomes – Parte 2: De banalidades a barbaridades
[2] A conversação como espaço de virtude e de perversão – Parte I: O lugar da alteridade na era do individualismo
[3] Chamar os “bois pelos nomes”: o caso do jargão empresarial
[4] Usamos a psicoterapia como exemplo, mas poderiam ser referidas quaisquer atividades que impliquem o estabelecimento de uma relação profissional de ajuda que se medeie através da conversação.
5] Se não conhece o fenómeno é simples de explicar. Nas formações sobre ética que já frequentei todas as pessoas que nelas participam são extremamente éticas e conseguem resolver os dilemas apresentados com distinção. O real desafio está na prática e não na teoria.

Comentários
João Sevilhano

João Sevilhano

É licenciado em Psicologia Aplicada, área de Psicologia Clínica. Exerceu funções em instituições de saúde na área da Psicologia Clínica. Trabalhou igualmente como técnico de recursos humanos passando por vários departamentos onde se destacam as atividades de criação e implementação de programas formativos, counseling de gestores e equipas e a gestão de R.H (SONAE Distribuição). Desenvolveu a sua atividade na Escola Europeia de Coaching (EEC), agora Way Beyond, onde foi sócio-gerente, director pedagógico, coach e facilitador. Na Way Beyond é... Ler Mais..

Artigos Relacionados

Luís Ahrens Teixeira, sócio-gerente Herdade da Cortesia Hotel
Ricardo Tomé, diretor-coordenador da Media Capital Digital