Opinião

A carreira profissional como uma sequência de crises

Mário Ceitil, formador e professor universitário*

Os seres humanos têm, em geral, um medo visceral do desconhecido, razão pela qual a incerteza, a ambiguidade e mesmo a dúvida persistente, podem gerar sentimentos de inquietação, ansiedade e stresse que ativam certas zonas do cérebro que nos impelem a ter atitudes reativas, cujas modalidades variam de acordo com a intensidade e a frequência dos sentimentos experimentados.

É por isso que todas as situações de mudança, sejam elas micro ou macro, de natureza pessoal, organizacional ou social, são, em si mesmas “problemáticas”, porque obrigam as pessoas a saírem do conforto das suas rotinas e a porem em perspetiva as conceções habituais que têm sobre si próprias, sobre os outros e, muitas vezes, sobre a vida em geral.

Uma das situações profissionais em que essa relação tem maior criticidade é a “Gestão das Carreiras”, onde o complexo jogo de ambições pessoais, expetativas e, ao mesmo tempo, de perceção do risco, se misturam num “cocktail” emocional que cada pessoa gere à sua maneira, procurando sempre minimizar os danos das possíveis decisões a tomar e maximizar os ganhos que daí poderá obter.

Qualquer que seja a perspetiva e o enfoque sob o qual se analise o conceito de carreira profissional, o que é facto é que, para cada pessoa, a ideia em si representa sempre o nível de aspirações que cada um tem em relação ao seu futuro profissional, sendo que a “progressão na carreira” constitui um dos mais poderosos fatores de motivação e, consequentemente, um dos que mobiliza maior atenção e mais intensa carga emocional por parte de todos os profissionais, independentemente dos diferentes níveis hierárquicos, funcionais e etários em que cada um se inclui.

Apesar disso, existem diferenças sensíveis nos modos como cada pessoa encara a sua carreira e existem igualmente diferentes conceções nas formas como as organizações definem as suas próprias “estruturas de carreiras”.

Nas perspetivas mais tradicionais de gestão, muito enfocadas em paradigmas racionalistas, era habitual as carreiras profissionais serem desenhadas, particularmente nas grandes empresas e nos setores da administração pública, fundamentalmente com base em critérios formais, como as qualificações dos trabalhadores obtidas por via formal ou oficial e os chamados fatores “consuetudinários”, como, por exemplo, antiguidade na organização, antiguidade num determinado cargo ou escalão e até os anos de experiência.

Nesse tipo de empresas e organizações que, a pretexto de darem maiores garantias de segurança aos seus trabalhadores e evitarem as possíveis ansiedades da incerteza, estabeleciam regras rígidas para quase tudo, a carreira profissional era (e, em alguns casos, ainda é) concebida como uma sequência linear de cargos e de categorias, definida muito em função dos tais critérios formais e estáticos que, por serem rígidos, não possibilitavam naturalmente uma intervenção direta de cada trabalhador na gestão da sua carreira. Ou seja, nesse contexto, a carreira era definida pela organização e não pela pessoa. A esta, restava apenas aguardar que chegasse o momento previsto para a desejada progressão.

Como, nesses casos, o mérito não era considerado um fator determinante na sua evolução, à medida que o tempo ia passando o trabalhador tendia a cristalizar, ou até a regredir, nas suas capacidades e competências, enquanto aguardava pacientemente que o devir do tempo determinasse a sua chegada ao almejado “topo da carreira”.

O risco, aqui, era o de gerar uma relação perversa entre o mérito e a evolução na carreira: à medida que o trabalhador se ia aproximando do topo, menos competente se tornava. Atingir o topo não era uma conquista, mas simplesmente um direito adquirido.

O mundo em que atualmente vivemos é, todavia, radicalmente diferente. Ao contrário desse antídoto contra a ansiedade que é a hipotética certeza num futuro previsível, que afinal é sempre ilusória, a carreira profissional é hoje concebida também como uma sequência, só que já não linear, de experiências profissionais, caracterizada por “uma série de estágios e transições variáveis a partir das pressões vivenciadas pela pessoa, trilhadas por ela no ambiente em que está inserida” (1).

Ao contrário da “ordem tradicional” em que a carreira era definida pela organização e em que a aspiração dominante das pessoas era a de arranjar um emprego estável e duradouro, hoje, e numa situação em que os dinamismos da sociedade, das organizações e das pessoas, atuam e se desenvolvem em contextos de grande volatilidade e imprevisibilidade, os elementos determinantes da carreira de cada profissional já não são, nem podem ser, os fatores estáveis e consuetudinários.

Hoje, os fatores que prevalecem como principais garantes da empregabilidade de cada pessoa, são o seu mérito, as suas capacidades de aprendizagem e as competências adquiridas em permanência ao longo da vida. E ainda, como fator decisivamente diferenciador, a sua capacidade de lidar positivamente com a ambiguidade e a mudança, que se tornou a única variável permanente.

Ao contrário da aparente estabilidade das empresas tradicionais, que abominavam as crises, as carreiras profissionais modernas são hoje lavradas dentro da própria crise, já que a crise é o húmus de uma sociedade caraterizada pela volatilidade e pela impermanência.

Se aquilo que entendemos por crise é, como definido na Wikipédia, “toda a situação de mudança a nível biológico, psicológico ou social, que exige da pessoa um esforço suplementar para manter o equilíbrio ou o sentimento de estabilidade emocional”, facilmente se concluirá que é essa a paisagem dominante do nosso cotidiano profissional.

Será que, perante esta paisagem, todos os profissionais atuais estão devidamente preparados para enfrentar estes novos desafios? Será que estão todos bem apetrechados para superar positivamente o medo visceral do desconhecido e conseguirem estruturar-se interiormente para fazer face a um ambiente cada vez mais desestruturado e desestruturante?

A boa resposta, como é natural, será: alguns estão e outros, talvez não.

Viver em crise permanente é qualquer coisa que exige competências de um nível de complexidade elevado, com a agravante de que algumas delas entroncam diretamente com características de personalidade inatas ou modeladas pela experiência e pela história de vida.

E, aqui, as variáveis geracionais podem ter, de facto, uma relevância significativa.

Assim, é natural e previsível que pessoas pertencentes à Geração Baby Boomers (1945-1964), que é caraterizada por indivíduos que preferem a disciplina e a organização e têm como principais objetivos profissionais construir carreiras sólidas e estáveis, tenham uma maior circunspeção em relação às caraterísticas da sociedade atual e às atuais práticas de gestão e experimentem alguma maior dificuldade em se adaptarem a uma certa “desordem ordenada” a que estão sujeitos cotidianamente nas suas empresas.

Possuem, no entanto, a solidez da sua experiência e a serenidade construída na superação das muitas crises políticas e sociais que enfrentaram ao longo da sua vida.

Atendendo aos percursos realizados e aos longos anos em que se foram sedimentando hábitos associados a uma lógica de emprego fixo e estável, as pessoas pertencentes a este estrato geracional valorizam bastante a estabilidade e não lidam bem com as situações ambíguas e a falta de clareza nas orientações estratégicas dos gestores.

A geração seguinte, designada por Geração X (1965-1981) é caraterizada por pessoas com um forte pendor individualista e independente, para além de serem “viciados no trabalho”. Apesar de terem nascido antes da Internet, adaptam-se muito bem às novas tecnologias e lidam bem com a pressão e o inesperado. Como constituem a maior franja das pessoas que exercem atualmente funções de chefia e liderança, é fundamental que desenvolvam uma sólida resiliência e a inteligência emocional para superarem as suas próprias ansiedades e, enquanto líderes, ajudarem as suas equipas a não se deixarem levar pela impaciência e por emoções desordenadas que lhes possam toldar o discernimento.

Para estes, a carreira é pensada como um percurso profissional onde se valoriza a experiência e a possibilidade de evoluir, não só em termos de desenvolvimento pessoal e remuneração, mas também em progressão efetiva em responsabilidades e cargos formais de gestão.

Relativamente aos indivíduos pertencentes à Geração Y (1982-1994), e aos que pertencem à Geração Z (1995-2010), como já fazem parte do grande grupo dos “nativos digitais”, embora com algumas diferenças entre si, são aqueles que, pelo menos em princípio, não só estão mais bem preparados para viver carreiras muito mais flexíveis, como a possibilidade de terem novas e estimulantes experiências profissionais constitui, por si só, um enorme aliciante e um poderoso fator motivacional.

Estes dois tipos de pessoas têm habitualmente uma visão muito flexível da carreira, valorizando sobretudo as experiências interessantes e que possibilitem aprendizagens contínuas e variadas, não pretendendo exercer apenas uma função ao longo da vida. Habitualmente não têm grandes aspirações a desempenharem cargos de chefia, pelo menos do ponto de vista formal, e não estão muito dispostos a “sacrifícios” da sua vida pessoal, a não ser em situações pontuais e para projetos interessantes. A carreira, para eles, é efetivamente pensada como uma sequência de desafios.

No essencial, seja qualquer for a geração a que pertencem e sejam quais forem os valores que perfilhem, o conjunto das pessoas que constituem o efetivo atual e futuro das nossas empresas e organizações têm em comum o desafio de se assumirem como agentes ativos dos processos de mudança contínua que as suas organizações enfrentam, demonstrando, pela sua prática, que se assumem como  verdadeiros “stakeholders”, ou seja, pessoas realmente relevantes e que têm algo a dizer sobre as escolhas estratégicas das organizações em que trabalham. Para isso, é obviamente importante que os líderes e responsáveis empresariais os considerem também como elementos a serem de facto “levados em linha de conta” e promovam práticas que estimulem o seu envolvimento ativo.

Perante estes novos desafios, os colaboradores terão de abandonar as suas tendências reativas de enfrentarem as crises com queixas e protestos sistemáticos, remetendo as responsabilidades e as culpas para outros, sejam eles colegas, chefias, gestores de topo das empresas ou políticos, através de atitudes que apenas servem como catarses de frustrações ou inconsequentes catalisadores da insegurança.

E, nas organizações, deixarem definitivamente de ser apenas espetadores passivo/agressivos daquilo que os outros fazem e decidem e tornarem-se efetivamente protagonistas das suas próprias carreiras profissionais e afinal, das suas próprias vidas.

Referências
(1) Ana Carolina Bispo, Murilo Gabriel da Costa Silva, Gabrielle Ponciano Lira & Tatiana Porfírio de Lima. (2022). Perspectivas de carreira da geração Z: um estudo na Empresa Júnior de Administração da Universidade Federal da Paraíba.

 

*Docente convidado do ISCTE/Executive Education; Coordenador das Pós-Graduação em “Desenvolvimento Emocional e Coaching” do ISCTE/Executive Education; Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG -Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas.

Comentários
Mário Ceitil

Mário Ceitil

Licenciado em Psicologia Social e das Organizações pelo ISPA, Mário Ceitil é consultor e formador na CEGOC desde 1981, tendo participado em vários projetos de intervenção, nos domínios da Psicologia das Organizações e da Gestão dos Recursos Humanos, em algumas das principais empresas e organizações, privadas e públicas, em Portugal e em países da África lusófona. Integrou, como consultor, equipas internacionais do grupo CEGOS, em projetos europeus. É professor universitário, desde 1981, nas áreas da Psicologia das Organizações e da... Ler Mais..

Artigos Relacionados